quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Os Lírios não Nascem da Lei

Acabei de receber os comentários de Esther Riane sobre o artigo que tinha enviado para ela e para outras pessoas ainda há pouco. Ela é uma catarinense que conheci pela Internet e que está prestes a se formar em Direito e a se mudar para Tel-Aviv, capital de Israel. Não a conheço pessoalmente, mas já sei que Esther possui uma boa bagagem de leitura porque escreve bem e com desenvoltura sobre os mais variados assuntos.

O artigo que mandei para ela se chama “Amizade e Direitos Humanos” e é da autoria de Eduardo Ramalho Rabenhorst, diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e mestre e doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Estrasburg, na França. Além de lecionar na graduação e no mestrado da referida instituição, ele é professor visitante permanente de Teoria Geral do Direito nos cursos de mestrado e doutorado em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

Trata-se de uma abordagem original, escrita ao mesmo tempo com leveza e profundidade, que enfoca o direito à amizade como uma prerrogativa do ser humano – visto que tanto o amor parental quanto o amor erótico podem ser encontrados também nos animais. É no blog do autor (http://modosdedizeromundo.blogspot.com/2006_04_01_archive.html) que esse e outros interessantíssimos textos de sua autoria ou escolha podem ser degustados. A amizade é algo que não pode ser impedido ou restringido, seja pelo Estado ou mesmo pelos familiares, porque guarda uma relação direta com a qualidade de vida de cada um e com o próprio sentido da existência.

No início da minha graduação fui apresentado a um sujeito que sabia o número de inúmeras leis e de inúmeros artigos de lei de memória, e que fazia questão de exibir tal faculdade. Hoje vejo que aquilo me incomodava não apenas porque soava arrogante, mas também porque eu não sabia de cor nenhuma lei ou nenhum artigo de lei. Embora esse colega mais adiantado do curso de Direito não tenha se revelado um profissional de destaque, pude conhecer vários outros com o mesmo estranho hábito e que se tornaram juízes, promotores e advogados de sucesso.

Um aspecto relevante do texto de Rabenhorst é a contribuição para a quebra da visão dogmática do Direito, que no cotidiano dos operadores jurídicos é muitas vezes reduzido à lei. Por Direito se deve compreender os valores que devem nortear a redação, a aplicação e a interpretação da norma, de forma que ele não deve ser limitada a esta. Nessa ordem de idéias, o Direito se relaciona com tudo que é importante para os seres humanos, inclusive a amizade, a poesia e a própria felicidade.

Haveria, então, um direito de escrever poesias, de admirar as estrelas em uma noite enluarada, de entoar uma canção admirável, de ler literatura fantástica, de enviar flores para a mulher amada e de enxergar o mundo de uma forma diferente. Obviamente não seriam direitos absolutos, até porque teriam de se compor com o quadro de direitos já estabelecidos atualmente.

É importante destacar que esse lado filosófico e até poético do Direito possui uma amplitude maior, podendo ser aplicado a qualquer aspecto das relações humanas e sociais, especialidade do autor citado. Infelizmente, os problemas que chegam ao Poder Judiciário é que são objeto de atenção dos profissionais jurídicos, que fazem da atividade jurídica unicamente a resolução de conflitos – até porque é isso que move a atividade de juízes, promotores e advogados. Contudo, o Direito existe realmente quando os direitos são respeitados e efetivados, e nem sempre o acesso ao Poder Judiciário traduz isso.

Na sua carta eletrônica Esther afirma que o texto não se aplicam aos parlamentares brasileiros, que seriam mais cúmplices do que propriamente amigos. O que poderia parecer um comentário despretensioso se revelou algo extremamente pertinente para o que está sendo discutido. É realmente complicado querer reduzir o Direito à lei em um país onde as pessoas encarregadas de legislar parecem ter perdido o compromisso com o bem comum da população, em face dos diários escândalos envolvendo o Congresso Nacional e outras casas legislativas.

Uma característica dos chamados “novos direitos”, ou direitos fundamentais de terceira geração, é a maior relação entre a garantia e a materialidade desses direitos, que não têm sentido enquanto não forem efetivados. É o caso do Direito Ambiental, do Direito do Consumidor, do Direito da Infância e Juventude e do Direito do Idoso, cujo conteúdo ético não favorece tanto a ocorrência de distorções. Por consagrarem valores tão essenciais para a sociedade e, consequentemente, para o Estado, esses Direitos devem se sobrepor a qualquer dispositivo que os reduza, o que evidentemente inclui as leis.

É o que acontece com o Direito Ambiental, ramo do Direito com o qual trabalho há mais de seis anos. Com efeito, de nada adianta uma legislação ambiental avançada se na prática o meio ambiente estiver sendo degradado gerando prejuízos à qualidade de vida da coletividade. Existem autores e profissionais que se preocupam mais com a legislação ambiental do que com o meio ambiente, esquecendo-se de que sem o meio ambiente ecologicamente equilibrado não haverá qualidade de vida ou nem mesmo vida para os seres humanos – de forma que não haverá também o Direito, seja ele Ambiental ou não. É por isso que Carlos Drummond de Andrade escreveu no poema “Nosso tempo” que as leis não bastam, posto que os lírios não nascem da lei.

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Perfil

Advogado, consultor jurídico e professor de Direito Ambiental e Urbanístico.