sábado, 26 de janeiro de 2008

Princípio do Acesso Equitativo aos Recursos Naturais

Alexandre Kiss[1] entende que o conceito de justiça ambiental tem como fundamento a igualdade e a equidade dentro de um tríplice significado: a justiça para com as pessoas que vivem no presente, a justiça para com a humanidade futura e a justiça entre as espécies vivas. Em um primeiro momento se enfoca a idéia de justiça social dentro de uma perspectiva de partilhamento equitativo dos recursos naturais, depois essa idéia é trabalhada tomando por base as gerações futuras e, por fim, é apregoada uma nova ética na relação entre os seres vivos.

Nessa ordem de idéias, José Joaquim Gomes Canotilho[2] destaca a idéia de um Estado de Justiça Ambiental, um regime estatal caracterizado pela vedação da distribuição não equitativa dos benefícios e malefícios da extração e do aproveitamento dos recursos naturais. Dentro desse panorama ganha importância o princípio do acesso eqüitativo aos recursos naturais, segundo o qual os bens ambientais devem ser distribuídos de forma equânime entre os habitantes do planeta.

Paulo Affonso Leme Machado[3] defende que os bens que compõem o meio ambiente, a exemplo da água, do ar e do solo, devem atender a demanda de todos os seres humanos na medida de suas necessidades. O autor destaca três formas de distribuição do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: acesso ao consumo dos recursos naturais, acesso causando poluição no meio ambiente e acesso para a contemplação da paisagem.

O Princípio 5 da Declaração Universal sobre o Meio Ambiente dispõe que “Os recursos não renováveis do Globo devem ser explorados de tal modo que não haja risco de serem exauridos e que as vantagens extraídas de sua utilização sejam partilhadas a toda a humanidade”. Já o Princípio 1 e 3 da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento dispõem que “Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza” e que “O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas eqüitativamente as necessidades de gerações presentes e futuras”. A Convenção para a Proteção e Utilização dos Cursos de Água Transfronteiriços e dos Lagos Internacionais, de Helsinque, 1992, em suas disposições gerais dispõe que “os recursos hídricos são gerados de modo a responder às necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades” (art. 5º, 5, c).

A Convenção sobre os Usos dos Cursos de Água Internacionais para Fins Distintos da Navegação diz em seu art. 5.1: “Os Estados do curso de água utilizam, em seus territórios respectivos, o curso de água internacional de modo eqüitativo e razoável. Em particular, um curso de água internacional será utilizado e valorizado pelos Estados do curso de água com o objetivo de chegar-se à utilização e às vantagens ótimas e duráveis – levando-se em conta os interesses dos Estados do curso de água respectivos – compatíveis com as exigências de uma proteção adequada do curso de água”.

A Convenção da Diversidade Biológica, que foi ratificada por meio do Decreto nº 2.519/98, estabelece no seu art. 15.7 que “Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas, conforme o caso e em conformidade com os arts. 16 e 19 e, quando necessário, mediante o mecanismo financeiro estabelecido pelos arts. 20 e 21, para compartilhar de forma justa e eqüitativa os resultados da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os benefícios derivados de sua utilização comercial e de outra natureza com a Parte Contratante provedora desses recursos. Essa partilha deve dar-se de comum acordo”. O artigo 11 do Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos, assinado no dia 17 de novembro de 1988 em São Salvador, na República de Salvador, estabelece que “Toda pessoa tem direito de viver em meio ambiente sadio e de beneficiar-se dos equipamentos coletivos essenciais”.

Pode-se vislumbrar esse imperativo do acesso eqüitativo aos recursos naturais também na legislação ordinária. É o caso da Lei nº 9.433/97, cujo inciso I do art. 2º determina que é objetivo da Política Nacional dos Recursos Hídricos “assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos”, e cujo art. 11 estabelece que “O regime de outorga de direitos de uso de recursos hídricos tem como objetivos assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água”. A Lei nº 10.275/01, conhecida como o Estatuto da Cidade, é mais explícita nesse sentido ao dispor no inciso IX do art. 2º que a “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização” é uma diretriz da política urbana, tendo em vista a ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana.

A referência mais importante ao princípio do acesso equitativo aos recursos naturais no ordenamento jurídico brasileiro é a classificação do meio ambiente pelo caput do art. 225 do texto constitucional como “bem de uso comum do povo”, equidade essa que é considerada também no que diz respeito às gerações futuras. Ademais, da mesma maneira que os direitos civis e sociais, trata-se de um direito fundamental cuja fundamentação se encontra no princípio da dignidade da pessoa humana, que está previsto no inciso III do art. 1° da Constituição Federal. Essa apropriação privada dos recursos ambientais coletivos, e conseqüente imposição dos riscos ambientais a uma parcela não privilegiada da população, consiste em uma afronta direta ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado da mesma maneira que à isonomia apregoada pelo texto constitucional em relação a todos os cidadãos:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; (...)

O art. 170 da Constituição Federal dispõe que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social, consagrando como princípios da atividade econômica nos incisos VI e VII a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação” e a “redução das desigualdades regionais e sociais”.

Os referidos dispositivos constitucionais apontados serviram para consagrar definitivamente no ordenamento jurídico nacional o conceito de desenvolvimento sustentável, um modelo que procura equacionar o crescimento econômico, o bem-estar social e a proteção do meio ambiente, com ênfase tanto nas gerações presentes quanto nas futuras. A formulação dessa conceituação implicava o reconhecimento de que as forças de mercado abandonadas a uma livre dinâmica não garantiriam a manutenção do meio ambiente, impondo um paradigma novo ao modelo de produção e consumo tradicional.

O desenvolvimento sustentável coloca na berlinda o modelo de produção e consumo do ocidente, que ameaça o equilíbrio planetário. Além disso, se preocupa com os problemas do futuro, enquanto o atual modelo de desenvolvimento fundado em uma lógica puramente econômica se centra exclusivamente no presente. O termo, que foi utilizado pela primeira vez em 1980 por um organismo privado de pesquisa, a Aliança Mundial para a Natureza (UICN), foi consagrado em 1987 quando a ex-ministra norueguesa Gro Harlem Brundtland o utilizou em um informe feito para a ONU, em que dizia da imprescindibilidade de um novo modelo de desenvolvimento econômico.

A despeito disso, o que se tem observado nos modelos de desenvolvimento econômico vigentes é predominantemente um completo desequilíbrio entre o aspecto ambiental, econômico e social. O ordenamento econômico propiciou uma desproporção inversa na distribuição dos riscos e da produção dos bens e serviços de consumo, colocando de um lado a parcela da sociedade que tem a propriedade dos recursos naturais e que tem dinheiro para adquirir os bens e serviços de consumo direta ou indiretamente oriundos do meio ambiente, de outro a parcela da sociedade que além de não ter acesso ao consumo ainda tem de arcar com a maior parte do ônus da degradação ambiental.

A pobreza dificulta o acesso à informação, implicando na falta de conscientização ambiental e jurídica, ao mesmo tempo em que impede a obtenção por parte dos prejudicados de uma infra-estrutura de precaução ou de reparação contra os efeitos da degradação. Na proximidade das comunidades citadas ficam os lixões, as indústrias poluidoras e os depósitos de rejeitos, incluindo os de resíduos tóxicos e radioativos. A contaminação da água, do ar e do solo e a extração desordenada do patrimônio natural ocorrem com facilidade, já que nem a mídia nem o Poder Público demonstram preocupação.

Paralelamente nesses lugares as medidas de recuperação do meio ambiente, como o reflorestamento ou a descontaminação de um rio, raramente acontecem. É uma triste ironia que os moradores do depósito de lixo da sociedade não tenham direito aos bens que a natureza proporciona, sejam industrializados ou não, oferecidos pelo mercado. Na realidade, a parte que coube a esses “severinos” no latifúndio do planeta, além dos sete palmos de terra contaminada, foi a alta incidência de doenças como asma, alergia e câncer e a completa falta de condições sanitárias para trabalhar, estudar e viver.

Admitir que os textos legais consagrem o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o acesso equitativo aos recursos naturais, sem levar em consideração os condicionamentos sociais concretos, implica na prática na aceitação e na consagração das desigualdades e injustiças existentes[4]. Diante disso, é preciso que a repartição do acesso material ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado na sociedade de risco seja estudada a partir da perspectiva da luta de classes no espaço social, tendo em vista a relação inversamente proporcional entre a sujeição aos riscos ecológicos e, por conseqüência, aos danos ambientais, e a condição econômica e social dos indivíduos e grupos da sociedade. Referências

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Privatismo, associacionismo e publicismo no Direito do Ambiente: ou o rio da minha terra e as incertezas do Direito Público. Ambiente e Consumo, Lisboa, Centro de Estudos Jurídicos, 1996, v. I.

MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental brasileiro. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. KISS, Alexandre. Justiça ambiental e religiões cristãs. In: Desafios do Direito Ambiental no século XXI – estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado.

KISHI, Sandra Akemi Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (orgs). São Paulo: Malheiros, 2005.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Ômega, 1997.
-------------------------------------------------------------------------------- [1] KISS, Alexandre. Justiça ambiental e religiões cristãs. In: Desafios do Direito Ambiental no século XXI – estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. KISHI, Sandra Akemi Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (orgs). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 47-48.
[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Privatismo, associacionismo e publicismo no Direito do Ambiente: ou o rio da minha terra e as incertezas do Direito Público. Ambiente e Consumo, Lisboa, Centro de Estudos Jurídicos, 1996, v. I, p. 156.
[3] MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental brasileiro. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 43-47.
[4] WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Ômega, 1997, p. 42-43.

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Perfil

Advogado, consultor jurídico e professor de Direito Ambiental e Urbanístico.