sábado, 19 de abril de 2008

A Doutrina Judaico-Cristão, o Meio Ambiente e o Pecado de Poluir

Desde a consolidação do movimento ambientalista, a partir da década de sessenta nos países de primeiro mundo e na década de oitenta nos países periféricos, o judaísmo e o cristianismo têm sido apontados como um dos grandes responsáveis pela degradação das condições ambientais planetárias. Tal crítica começou a ganhar respaldo científico ao final da década de sessenta com a publicação do artigo intitulado “As raízes históricas da crise do meio ambiente”, de autoria do pesquisador Lynn White Jr.

O seguinte versículo do Antigo Testamento foi usado para fundamentar a apropriação privada dos recursos naturais, processo que se intensificou com a Revolução Industrial: “E Deus os abençoou, e disse: crescei e multiplicai-vos, e enchei a Terra, e despertai-a e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a Terra” (Gênesis: 1, 28). Em face disso, passou a prevalecer a interpretação de que o ser humano é o sujeito e a natureza o objeto da criação, seguindo uma relação de evidente antagonismo.

Com efeito, a grande questão levantada está no cerne do judaísmo e do cristianismo e diz respeito à própria idéia de Deus, que segundo a referida concepção é algo não apenas distinto da natureza, mas sobretudo superior a ela. Esse argumento foi crucial na expansão da fé cristã pela Europa e pelo resto do planeta, subjugando as crenças ditas pagãs das populações tradicionais, para as quais ou Deus se manifestava na natureza ou Deus se confundia com a própria natureza.

Existe um inegável egoísmo na idéia de que Deus enviou o seu único filho para se sacrificar em prol da salvação da humanidade, relegando a um segundo plano o restante da criação, pois somente o ser humano teria sido feito à semelhança da divindade máxima. Com isso, os recursos naturais como a água, a fauna e a flora poderiam e até deveriam ser dilapidados, pois esse era o mandamento divino.

Isso é diferente, por exemplo, da moral budista, segundo o qual a iluminação do príncipe Sidharta Gautama ocorreu com o objetivo de salvar todos os seres vivos, que poderiam se iluminar simplesmente por também terem natureza búdica. A maior parte das outras religiões e crenças existentes no mundo, como o hinduísmo, o taoísmo, a umbanda e o xintoísmo, não se pautam pelo antropocentrismo e, por conseqüência, assumem uma feição mais ecológica.

Contudo, é possível constatar uma certa precipitação por parte de quem endossa essa crítica, que parece ignorar por completo as questões políticas e sociais que permeiam a crise ambiental planetária. De fato, associar a degradação ao pecado original, como se a origem da questão ambiental fosse simplesmente a imperfeição humana, é esquecer que a exploração dos recursos naturais é feita em prol somente de uma parcela mais restrita da humanidade.

Se o processo econômico que resultou nessa problemática trouxe efetivamente inúmeros benefícios, seja na área de comunicações, entretenimento, saúde, tecnologia ou transportes, o fato é que uma parcela significativa da população internacional é pouco atingida, ou simplesmente não é atingida, por tais benefícios. O irônico é que os efeitos negativos do desenvolvimento, como o esgotamento dos recursos naturais, a geração de resíduos, a disseminação de doenças e a produção de riscos ecológicos de uma forma geral, também são distribuídos de forma injusta no espaço social, de forma que sofrem mais com a degradação os menos situados socialmente.

Em outras palavras, não foi a humanidade que subjugou a natureza, mas determinadas classes economicamente privilegiadas, no âmbito social, e determinados países considerados ricos, no âmbito da geopolítica internacional. Logo, o que houve foi uma deturpação do texto bíblico com o intuito de justificar ideologicamente a exploração desmedida da natureza, certamente para atender aos interesses do capitalismo e das classes dominantes.

Como a Bíblia foi escrita há milênios e dentro de um contexto social inteiramente distinto, é óbvio que a idéia de que haverá novos céus e novas terras não deve ser interpretada literalmente. Além do mais, é possível encontrar nas escrituras diversas passagens que reforçam o apelo ecológico, a exemplo da seguinte: “Chamado a cultiva e a guardar o jardim do mundo” (Gênesis: 2, 15).

Prova dessa distorção é que há nove séculos São Francisco de Assis abriu dentro da própria Igreja Católica uma vertente mais ecológica, valorizando e até reverenciado os elementos da natureza. Contudo, não se pode deixar de reconhecer que nos últimos sessenta anos a exploração dos recursos naturais passou a se intensificar de uma forma tal que a própria continuidade da vida humana entrou em xeque.

Enquanto isso ocorria, em paralelo aos inúmeros problemas sociais gerados, as instituições religiosas judaico-cristãs pouco ou nada fizeram para amainar essa problemática, chegando mesmo a reforçar as estruturas de poder degradatórias. Em um contexto de crise ecológica planetária a omissão deve ser interpretada como uma tomada de posição em desfavor do meio ambiente e da qualidade de vida da coletividade, seja no que diz respeito aos indivíduos ou às instituições.

Cabe, então, fazer a seguinte pergunta: é correto não fazer nada para que a desertificação não aumente, para que as espécies não sejam extintas, para que as mudanças climáticas não ocorram, para que os rios não sejam poluídos? É claro que essa omissão não foi exclusividade das instituições religiosas judaico-cristãs, já que praticamente toda estrutura econômica e social predominante favorecia o descuido com a natureza.

É nesse contexto que o Vaticano anunciou com grande repercussão que a poluição e a manipulação genética – prática que pode colocar em risco também o meio ambiente, especialmente por meio do uso das técnicas de transgenia – são pecados capitais. Com isso, somaram-se novos aos já conhecidos sete pecados capitais, que são a gula, a luxúria, a avareza, a ira, a soberba, a vaidade e a preguiça.

Dessa forma, a partir de agora os fiéis deverão pedir perdão e fazer penitência caso desrespeitem tais valores, segundo orientou o arcebispo Gianfranco Girotti, atual responsável pelas questões relativas a pecado e penitência da Santa Sé. Isso significa que a Igreja Católica encampou definitivamente a bandeira ecológica, o que é deveras importante tendo em vista o grande número de fiéis que pode passar a se dedicar mais à causa em todo o mundo.

Não poluirás a Terra e temerás a manipulação genética, é o que determina o novo mandamento. Na verdade, esse anúncio foi inspirado no Papa João Paulo II, que foi a primeira grande liderança católica moderna a encampar efetivamente a questão ao declarar que a ecologia deve ser uma preocupação de todos católicos.

Tal mudança de atitude demonstra que a Igreja Católica está sensível aos problemas ambientais e sociais da atualidade, exemplo que deve ser seguido pelas demais instituições religiosas, pois a crise ambiental planetária não pode ser solucionada apenas pelo Estado, e sim pelo empenho efetivo de cada indivíduo e de cada instituição. Nesse ponto, pela capacidade de se disseminar e de influenciar as pessoas, as religiões possuem um papel fundamental na questão ecológica, até porque essa luta diz respeito à liberdade religiosa e de evolução espiritual das gerações futuras, que podem até não chegarem a existir.

Esse é o fio comum que deve unir todas as religiões e práticas espirituais em favor do planeta, pois como afirma o rabino Ary Glinkin “Tanto o judeu, quanto o islâmico, o católico e o budista bebem água e respiram, então, a ecologia por si só já é ecumênica”. Afinal de contas, não se pode como salvar a humanidade sem salvar o lugar onde ela habita e do qual depende para sobreviver, de forma que atentar contra o meio ambiente deve mesmo ser enquadrado como um pecado contra o planeta e contra a própria humanidade.

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Perfil

Advogado, consultor jurídico e professor de Direito Ambiental e Urbanístico.